Eram 6 da tarde em horário brasileiro de verão e estava ali sentado há pelo menos duas horas, uma senha na mão e uma vontade absurda de ir ao banheiro após as três vezes em que levantou pra tomar um copo d'água e esticar as pernas. Seria chamado dali a dois números, mas já com noções de tempo transcorrido e tempo futuro extintas, se via apenas parado na Eternidade e lamentando não ter trazido o velho cubo de Rubik no bolso. Agora sim teria tempo suficiente pra resolvê-lo após dois anos de frustração, mas sabe-se que da vida nada se leva. Nem ao menos um passatempo pra fila do Inferno.
Longe do que se entende de todo esse tédio, a sua volta, centenas de rostos conhecidos. Aquela professora do primário, já bastante mais velha do que se recordava, mas com aquele cheiro de alfazema tão característico que seria capaz de reconhecê-la a três quilômetros de distância. O grupinho de amigos da época da escola, o reitor da universidade, aquela que foi sua primeira trepada, aquela que foi sua segunda trepada, o porteiro do prédio, o baterista da banda de rock que fez um show na cidade vizinha duas semanas antes, seus pais. Cada um em sua cadeira, apenas se limitando a olhares furtivos. Em cada um desses olhares, uma faísca de deboche ao ver ali aqueles que pareciam ter uma reputação ilibada, mas ao mesmo tempo, a vergonha estampada em todas as testas por estarem também ali, na ante-sala do Demônio.
Quebra o silêncio uma pequena criatura semi-humana de voz especialmente aguda, chamando o próximo número. Levanta uma senhora, costas curvas e mão segurando um crucifixo pendurado em seu pescoço. Anda lentamente rumo à porta pintada de branco, como que antevendo o que irá acontecer, mas sem hesitar, reconhecendo o inevitável. Olha para a criatura e chora, apertando a cruz com seu Cristo. Como que constatando já estar morta e ainda consciente, arregala seus olhos e arranca a cruz de seu pescoço com força. Pára logo à sua frente, ajoelhada, gritando impropérios, olhando para cima e vendo apenas um teto de rochas, desesperada. Ele se levanta e ajuda a senhora a se recompor, levando-a pelo braço até a criatura, que imitando o gesto de solidariedade humana, entra com ela de braço dado pela porta branca. De lá, não se ouve mais nada e ninguém além da criatura sai. Se vêem sozinhos com a Eternidade mais uma vez.
Olha pra suas mãos e vê ali os membros de um jovem físico. Em seus poucos 27 anos, não fizera muita coisa que justificasse sua presença naquele cômodo insípido, tão parecido com um consultório dentário. A sua volta, podia ver pecados escritos à faca em cada um deles. Em sua mãe, sangrava a palavra adultério. Sua idosa professora do primário ostentava a luxúria escrita por sete vezes apenas na perna direita. Sua primeira foda pecara contra a castidade. Um desconhecido ao fundo trazia consigo um homicídio e um senhor, aparentemente tão distinto, estava sem camisa e três eventos de pedofilia rasgados às costas.
- Quinhentos e cinquenta e três!
Depois de tanto tempo ali sentado, distrair-se com o sangue alheio fez o tempo passar mais rápido. Foi até a porta branca sem ajuda, girou a maçaneta e se pôs pra dentro sem levantar a cabeça. Já atrás dela, levanta os olhos e observa o lugar. Exatamente como um consultório de dentista.
- Sente-se. Fique à vontade.
A voz vem de um homem que se passaria por fiscal da Vigilância Sanitária, camisa listrada e suspensórios. Sapatos com solado ortopédico, calça muito bem cortada. Difícil crer naquela plaquinha com os dizeres "Dr. Lúcifer" em cima da mesa, ao lado da foto de uma mulher gorda em trajes de banho com duas crianças enterradas na areia da praia, com o Morro do Careca ao fundo. No canto via-se o próprio, deitado numa espreguiçadeira com uma Itaipava na mão.
- Demônio?
- Eu mesmo.
- É sério?
- Muito sério. Por que a pergunta?
- Tinha outra idéia do que seria o senhor.
- Vocês humanos são engraçados. Sempre que entram aqui me dizem isso.
- Temos uma imagem muito clara do que é o Demônio lá na Terra. Não se parece em nada com isso.
- Vocês fazem idéia errada de tudo, são uns românticos. Acham mesmo que a vida de vocês é tão importante assim? Céu e Inferno são apenas burocracias.
- E por que os pecados escritos na pele ali fora?
- Criar impacto. Últimos minutos acreditando que o que fizeram ou deixaram de fazer realmente tinha algum sentido ou motivo.
- E por que não há nada escrito em mim?
- Desde quando os homens reconhecem as merdas que fazem? Só sabem olhar pra merda dos outros.
Pega um carimbo e bate numa folha. Apenas um OK.
- Pode se encaminhar para a porta dos fundos. EI VOCÊ! PODE IR BUSCAR O PRÓXIMO!
A criatura sem definição vai em direção à porta de entrada, ele se encaminha para a de saída. Mais uma vez olhando pro chão, gira a maçaneta e sai do outro lado da sala. Era idêntica à primeira. Cadeiras, um filtro, um banheiro masculino e um feminino. Sem cubo de Rubik. Agora entendera: Aquilo ali era a Eternidade.
Em meio às nuvens, Deus brinca de terminar o Apocalipse. Um suspiro.
- Ao menos a repartição lá embaixo tem algum movimento. Que tédio aqui em cima.