sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O fim.

Eram 6 da tarde em horário brasileiro de verão e estava ali sentado há pelo menos duas horas, uma senha na mão e uma vontade absurda de ir ao banheiro após as três vezes em que levantou pra tomar um copo d'água e esticar as pernas. Seria chamado dali a dois números, mas já com noções de tempo transcorrido e tempo futuro extintas, se via apenas parado na Eternidade e lamentando não ter trazido o velho cubo de Rubik no bolso. Agora sim teria tempo suficiente pra resolvê-lo após dois anos de frustração, mas sabe-se que da vida nada se leva. Nem ao menos um passatempo pra fila do Inferno.

Longe do que se entende de todo esse tédio, a sua volta, centenas de rostos conhecidos. Aquela professora do primário, já bastante mais velha do que se recordava, mas com aquele cheiro de alfazema tão característico que seria capaz de reconhecê-la a três quilômetros de distância. O grupinho de amigos da época da escola, o reitor da universidade, aquela que foi sua primeira trepada, aquela que foi sua segunda trepada, o porteiro do prédio, o baterista da banda de rock que fez um show na cidade vizinha duas semanas antes, seus pais. Cada um em sua cadeira, apenas se limitando a olhares furtivos. Em cada um desses olhares, uma faísca de deboche ao ver ali aqueles que pareciam ter uma reputação ilibada, mas ao mesmo tempo, a vergonha estampada em todas as testas por estarem também ali, na ante-sala do Demônio.

Quebra o silêncio uma pequena criatura semi-humana de voz especialmente aguda, chamando o próximo número. Levanta uma senhora, costas curvas e mão segurando um crucifixo pendurado em seu pescoço. Anda lentamente rumo à porta pintada de branco, como que antevendo o que irá acontecer, mas sem hesitar, reconhecendo o inevitável. Olha para a criatura e chora, apertando a cruz com seu Cristo. Como que constatando já estar morta e ainda consciente, arregala seus olhos e arranca a cruz de seu pescoço com força. Pára logo à sua frente, ajoelhada, gritando impropérios, olhando para cima e vendo apenas um teto de rochas, desesperada. Ele se levanta e ajuda a senhora a se recompor, levando-a pelo braço até a criatura, que imitando o gesto de solidariedade humana, entra com ela de braço dado pela porta branca. De lá, não se ouve mais nada e ninguém além da criatura sai. Se vêem sozinhos com a Eternidade mais uma vez.

Olha pra suas mãos e vê ali os membros de um jovem físico. Em seus poucos 27 anos, não fizera muita coisa que justificasse sua presença naquele cômodo insípido, tão parecido com um consultório dentário. A sua volta, podia ver pecados escritos à faca em cada um deles. Em sua mãe, sangrava a palavra adultério. Sua idosa professora do primário ostentava a luxúria escrita por sete vezes apenas na perna direita. Sua primeira foda pecara contra a castidade. Um desconhecido ao fundo trazia consigo um homicídio e um senhor, aparentemente tão distinto, estava sem camisa e três eventos de pedofilia rasgados às costas.

- Quinhentos e cinquenta e três!

Depois de tanto tempo ali sentado, distrair-se com o sangue alheio fez o tempo passar mais rápido. Foi até a porta branca sem ajuda, girou a maçaneta e se pôs pra dentro sem levantar a cabeça. Já atrás dela, levanta os olhos e observa o lugar. Exatamente como um consultório de dentista.

- Sente-se. Fique à vontade.

A voz vem de um homem que se passaria por fiscal da Vigilância Sanitária, camisa listrada e suspensórios. Sapatos com solado ortopédico, calça muito bem cortada. Difícil crer naquela plaquinha com os dizeres "Dr. Lúcifer" em cima da mesa, ao lado da foto de uma mulher gorda em trajes de banho com duas crianças enterradas na areia da praia, com o Morro do Careca ao fundo. No canto via-se o próprio, deitado numa espreguiçadeira com uma Itaipava na mão.

- Demônio?
- Eu mesmo.
- É sério?
- Muito sério. Por que a pergunta?
- Tinha outra idéia do que seria o senhor.
- Vocês humanos são engraçados. Sempre que entram aqui me dizem isso.
- Temos uma imagem muito clara do que é o Demônio lá na Terra. Não se parece em nada com isso.
- Vocês fazem idéia errada de tudo, são uns românticos. Acham mesmo que a vida de vocês é tão importante assim? Céu e Inferno são apenas burocracias. 
- E por que os pecados escritos na pele ali fora?
- Criar impacto. Últimos minutos acreditando que o que fizeram ou deixaram de fazer realmente tinha algum sentido ou motivo.
- E por que não há nada escrito em mim?
- Desde quando os homens reconhecem as merdas que fazem? Só sabem olhar pra merda dos outros.

Pega um carimbo e bate numa folha. Apenas um OK.

- Pode se encaminhar para a porta dos fundos. EI VOCÊ! PODE IR BUSCAR O PRÓXIMO!

A criatura sem definição vai em direção à porta de entrada, ele se encaminha para a de saída. Mais uma vez olhando pro chão, gira a maçaneta e sai do outro lado da sala. Era idêntica à primeira. Cadeiras, um filtro, um banheiro masculino e um feminino. Sem cubo de Rubik. Agora entendera: Aquilo ali era a Eternidade.

Em meio às nuvens, Deus brinca de terminar o Apocalipse. Um suspiro.

- Ao menos a repartição lá embaixo tem algum movimento. Que tédio aqui em cima.



domingo, 25 de dezembro de 2011

A véspera de Natal e a noção de tempo.

Envelhecer é estar parado na janela, olhando a chuva torrencial que do céu desaba e se ver arrepiado ao ouvir a voz do filho à porta e em um segundo, sentir suas mãos suarem, até constatar que a semelhança de voz o enganara e aquele que se foi cedo de fato não vai voltar nunca mais. Pensar naquele que ali está, vivo e esperando um abraço, e sem timidez alguma deixar a lágrima escorrer pelo rosto, transparecendo a decepção e quase raiva da Morte por ter lhe tirado aquele que mais amava e ironicamente, tê-lo deixado com aquele que um dia ele não quis. Se ver perdido em lembranças de outras noites, perdido na previsão das próximas, aquela mulher ao lado dele com um maço de cigarros na mão esperando um sorriso. Não ir até a porta. Se limita a ver a chuva e chover junto com ela.

Envelhecer é estar à porta está parado, engolindo em seco, tirar o maço de cigarros da mão da mulher e se por a fumar o primeiro dos muitos cigarros da noite, estando já embriagado e passar em frente ao espelho da sala. Deveria ser mais baixo. Deveria ser mais branco. Deveria ter olhos menores. Deveria estar morto. Ali não merecia estar, usurpando o lugar de outro, lugar esse que nunca teve. Se ver acabado. Segundo cigarro da noite. 

Envelhecer é estar de saltos altos e cabelo perfeitamente arrumado na cozinha aonde esteve em todos os dias dos últimos 35 anos e que amanhã a receberá como sempre recebeu. Se sentir realizada a cada vez que ouve o portão da casa abrir e vê, no simples ato de cozinhar pra muita gente, a justificação de sua existência. Não controlar o choro ao ver o filho chegar com a mulher, não querendo borrar a maquiagem e nem encostar nele com suas mãos cheias de comida. Volta a seus afazeres ainda chorando e se lembra dele puxando suas saias e dizendo que papai noel ainda não havia chegado com seu presente. Sentir-se viva por estar de cabelo arrumado e picando legumes. 

Envelhecer é chegar com um saco de presentes dos mais variados e entregá-lo a alguém com um sorriso no rosto. Vê-la abrir e tirar cada um dos pequenos objetos ali misturados, uma boneca, uma bola com o desenho de um olho verde que lembra o seu, bóias de se colocar nos braços, um óculos de natação, a foto amarelecida de uma senhora. É perceber no rosto daquela que a sua frente estava, o atraso de quase 20 anos naquela embalagem de loja de brinquedos e, a ponto de uma crise convulsiva em meio ao choque, ir procurar mais uma lata de cerveja.

Envelhecer é ver aquele que julga ser o amor da sua vida mais uma vez entregue ao vício, entregue ao riso descontrolado e às histórias vazias, contando aos outros sobre as noites vividas com outra e sobre aquela linda menina que pôs no mundo e que havia herdado dele os olhos verdes. Mesmo assim, chama todos à mesa, em solidariedade pede uma oração universal, e lhe faz um prato com todo o carinho, observando-o comer desajeitado e agir como uma criança dizendo que está com sono, que quer ir embora. Dar a chave do carro àquela que ganhara brinquedos. Segurar a mão e vê-lo dormir ao seu colo.

Envelhecer é viver o instante que vai das 23:59 do dia 24 de dezembro à 00:01 do dia 25 e constatar que nesses dois segundos, a vida de um ano inteiro é condensada. Envelhecer é viver vésperas de Natal. 

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A última conversa.

Já há dias deitada naquela cama, o quarto insípido parecia ainda mais impessoal apesar de todos os anos em que ali vi a fuga da minha via crucis diária. Um chão de madeira, um armário pequeno, uma única cadeira deixada ao lado da porta e uma pequena mesa, abarrotada com dezenas e mais dezenas de textos largados pela metade; as pesadas cortinas fechadas desde que botei meus pés naquele lugar e reclamei das paredes azuis. As queria brancas, facilita o pensamento. Não sabia ao certo desde quando convalescia, apenas lembrava de ter olhado o calendário no hall do prédio na última vez em que saí e ter visto ser uma quinta-feira, 22 de dezembro. Talvez tenha perdido o Natal. Bem, isso não fazia muita diferença.
Sentia o suor frio descendo pelo meu rosto e ensopar a única camiseta limpa que havia sobrado, tremia como se estivesse em uma banheira de gelo, aquela sensação pré-desmaio que infelizmente, de sensação não passava. Verifico minha pulsação e vejo que não está lá essas coisas, a respiração agora soa como a de um cachorro e sinto como se pudesse voar de tão leve, mas que longe do lirismo que faz parecer, é absurdamente incômodo . De repente, a janela abre sozinha e a neblina da rua toma conta do lugar, vento gelado que me faz soltar um gemido em protesto. Eis que ao lado da minha porta, a luz de uma ponta de cigarro se faz visível em meio à névoa e enxergo um homem. O sobretudo até a altura das canelas, a enorme testa e o cabelo jogado pra trás, pálido, magro. Se encaminha até a janela e a fecha. Agora a única névoa do quarto era a fumaça do cigarro. Nada muito bom pros meus pulmões quase desistentes.

- Boa noite.
- Nem tanto.
- Não sabe como está bela agora e como é belo esse momento. Esse é o momento mais belo por onde pode passar um ser humano. Gostaria que comigo tivesse sido assim, não tive sequer tempo de pensar.
- Pensei bastante durante boa parte da minha vida, não era isso que desejaria fazer agora.
- Provavelmente ter pensado demais foi o que te trouxe até aqui.
- Não duvido. Mas e a você, o que trouxe?

Joga o cigarro no chão e apaga com o pé esquerdo, como eu, canhota, o faria. Não sei se era canhoto, talvez estivesse apenas sendo solidário. Ou apenas querendo deixar uma marca de bituca no meu chão de madeira.

- Achei que era minha obrigação vir te fazer uma visita.
- Obrigação?
- Você me entendeu. E entende o que isso quer dizer.
- Desculpe, apenas não esperava.
- Ninguém espera por quem de fato se dispõe a aparecer. Geralmente se espera por alguém que nunca irá fazê-lo, ou alguém que sequer existe. Por quem você esperava?
- Sinceramente?
- Sim.
- Por ninguém.

Respiração rareando. Batimentos diminuindo. Sequer há força suficiente pra tremer.

- Está chegando a hora.
- Irá comigo?
- Sabe que não, mas acabaremos nos encontrando por lá.
- Como é?
- Bem frio.
- Mais do que agora?
- Creio que sim. Não sei o que sentes.

Silêncio constrangedor. O que está fora nunca sabe. Não há como.

- Vê o fundo?
- Não há fundo pra ver.
- Não há fundo?
- Não, não há.
- Esperava que respondesse isso.
- Pois então não deveria ter perguntado.

Sempre detestei tempo gasto desnecessariamente com perguntas de resposta óbvia.

- É, acho que chegou a hora.
- Então vamos.

Tira do bolso mais um cigarro, o acende e faz círculos no ar com a fumaça. De dentro do sobretudo, tira uma arma, que segura com a mão esquerda. Um tiro, já era. A respiração cessara, os batimentos se foram, o cérebro que se estrangulou por toda uma existência já não passava de matéria gasta e sem utilidade. Ele já sabia ter sido suficiente. Mais quatro tiros. Sabia que não resistiria a sustentar o clichê.

Dois dias depois, o corpo encontrado pela senhoria. Com o terço na mão, miava alguma ladainha à Nossa Senhora, intercalando-a com soluços e gemidos de "coitadinha, tão nova e tão só". O laudo de morte fora inconclusivo, aparentemente, não havia doença alguma e nenhum sinal de injúria ou violência. Um corpo intacto e até então, nada que justificasse aquela mulher morta numa cama, com olhos tão arregalados que pareciam ainda estar vivos, apesar do rosto petrificado numa expressão tão calma. A janela ainda fechada, o quarto organizado de forma peculiar, quase que uma bagunça completa. Ela sequer teve tempo de buscar as roupas na lavanderia.

A velha senhorinha abre a janela na intenção de arejar o ambiente e tirar o cheiro de cadáver, afinal, alugaria o quarto para outro. Uma corrente de vento e a primeira das folhas de meios-textos voa e vai parar ao pé da cama. Um texto inteiro completamente rasurado e ilegível, à exceção da última frase. "Não me sinto muito bem. Deve ser o Absurdo." E do lado de fora do prédio, mais um travesti grita aos policiais que seu programa não fora pago.