quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A última conversa.

Já há dias deitada naquela cama, o quarto insípido parecia ainda mais impessoal apesar de todos os anos em que ali vi a fuga da minha via crucis diária. Um chão de madeira, um armário pequeno, uma única cadeira deixada ao lado da porta e uma pequena mesa, abarrotada com dezenas e mais dezenas de textos largados pela metade; as pesadas cortinas fechadas desde que botei meus pés naquele lugar e reclamei das paredes azuis. As queria brancas, facilita o pensamento. Não sabia ao certo desde quando convalescia, apenas lembrava de ter olhado o calendário no hall do prédio na última vez em que saí e ter visto ser uma quinta-feira, 22 de dezembro. Talvez tenha perdido o Natal. Bem, isso não fazia muita diferença.
Sentia o suor frio descendo pelo meu rosto e ensopar a única camiseta limpa que havia sobrado, tremia como se estivesse em uma banheira de gelo, aquela sensação pré-desmaio que infelizmente, de sensação não passava. Verifico minha pulsação e vejo que não está lá essas coisas, a respiração agora soa como a de um cachorro e sinto como se pudesse voar de tão leve, mas que longe do lirismo que faz parecer, é absurdamente incômodo . De repente, a janela abre sozinha e a neblina da rua toma conta do lugar, vento gelado que me faz soltar um gemido em protesto. Eis que ao lado da minha porta, a luz de uma ponta de cigarro se faz visível em meio à névoa e enxergo um homem. O sobretudo até a altura das canelas, a enorme testa e o cabelo jogado pra trás, pálido, magro. Se encaminha até a janela e a fecha. Agora a única névoa do quarto era a fumaça do cigarro. Nada muito bom pros meus pulmões quase desistentes.

- Boa noite.
- Nem tanto.
- Não sabe como está bela agora e como é belo esse momento. Esse é o momento mais belo por onde pode passar um ser humano. Gostaria que comigo tivesse sido assim, não tive sequer tempo de pensar.
- Pensei bastante durante boa parte da minha vida, não era isso que desejaria fazer agora.
- Provavelmente ter pensado demais foi o que te trouxe até aqui.
- Não duvido. Mas e a você, o que trouxe?

Joga o cigarro no chão e apaga com o pé esquerdo, como eu, canhota, o faria. Não sei se era canhoto, talvez estivesse apenas sendo solidário. Ou apenas querendo deixar uma marca de bituca no meu chão de madeira.

- Achei que era minha obrigação vir te fazer uma visita.
- Obrigação?
- Você me entendeu. E entende o que isso quer dizer.
- Desculpe, apenas não esperava.
- Ninguém espera por quem de fato se dispõe a aparecer. Geralmente se espera por alguém que nunca irá fazê-lo, ou alguém que sequer existe. Por quem você esperava?
- Sinceramente?
- Sim.
- Por ninguém.

Respiração rareando. Batimentos diminuindo. Sequer há força suficiente pra tremer.

- Está chegando a hora.
- Irá comigo?
- Sabe que não, mas acabaremos nos encontrando por lá.
- Como é?
- Bem frio.
- Mais do que agora?
- Creio que sim. Não sei o que sentes.

Silêncio constrangedor. O que está fora nunca sabe. Não há como.

- Vê o fundo?
- Não há fundo pra ver.
- Não há fundo?
- Não, não há.
- Esperava que respondesse isso.
- Pois então não deveria ter perguntado.

Sempre detestei tempo gasto desnecessariamente com perguntas de resposta óbvia.

- É, acho que chegou a hora.
- Então vamos.

Tira do bolso mais um cigarro, o acende e faz círculos no ar com a fumaça. De dentro do sobretudo, tira uma arma, que segura com a mão esquerda. Um tiro, já era. A respiração cessara, os batimentos se foram, o cérebro que se estrangulou por toda uma existência já não passava de matéria gasta e sem utilidade. Ele já sabia ter sido suficiente. Mais quatro tiros. Sabia que não resistiria a sustentar o clichê.

Dois dias depois, o corpo encontrado pela senhoria. Com o terço na mão, miava alguma ladainha à Nossa Senhora, intercalando-a com soluços e gemidos de "coitadinha, tão nova e tão só". O laudo de morte fora inconclusivo, aparentemente, não havia doença alguma e nenhum sinal de injúria ou violência. Um corpo intacto e até então, nada que justificasse aquela mulher morta numa cama, com olhos tão arregalados que pareciam ainda estar vivos, apesar do rosto petrificado numa expressão tão calma. A janela ainda fechada, o quarto organizado de forma peculiar, quase que uma bagunça completa. Ela sequer teve tempo de buscar as roupas na lavanderia.

A velha senhorinha abre a janela na intenção de arejar o ambiente e tirar o cheiro de cadáver, afinal, alugaria o quarto para outro. Uma corrente de vento e a primeira das folhas de meios-textos voa e vai parar ao pé da cama. Um texto inteiro completamente rasurado e ilegível, à exceção da última frase. "Não me sinto muito bem. Deve ser o Absurdo." E do lado de fora do prédio, mais um travesti grita aos policiais que seu programa não fora pago.

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